domingo, 27 de março de 2011

A Humanidade do Xadrez

JUDAISMO E XADREZ

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Na década dos anos noventa Israel protagonizou uma revolta enxadrista ocupando o quinto posto no ranking mundial, depois da Rússia, Iugoslávia, Inglaterra e Hungria. Os grandes mestres israelenses passaram de cinco a mais de vinte, os clubes de xadrez se quintuplicaram (superando a centeia) e desde 1993 mais de cem escolas e centros comunitários abriram cursos de xadrez. Em Tel Aviv fundou-se a primeira Academia Internacional de Xadrez, que leva o nome do campeão mundial Garry Kasparov (nascido Weinstein). O fortalecimento do xadrez israelense não tem por causa somente a grande imigração russa, senão a relacionamento entre os judeus com o jogo-ciência, que supera uma mera coincidência.

O mestre internacional e campeão britânico, Coronel H. Alexander, dizia que os enxadristas poderiam se dividir em quatro grupos de talento decrescente: os judeus russos, os russos não judeus, os judeus não russos e os não russos nem judeus.

Judeus predominam entre os grandes mestres e teóricos. Além de Boleslavski, Botvinnik, Bronstein, Fine, Nimzowitzch, Reshevsky, Tal e Tartakover, foram judeus os campeões que mais tempo perduraram. Dentre eles, Emanuel Lasker, filho de um chazan e neto de um rabino, combinou o xadrez com sua carreira de filosofo e matemático, as três ciências? Tão afim. Lasker é considerado o enxadrista mais cabal de todos os tempos, e sua biografia foi prologada por Albert Einstein. O nazismo tirou sua glória, carreira e patrimônio.

Se mencionarmos também os últimos campeões como Fischer, Korchnoi ou Spassky, a desproporção de judeus entre os melhores enxadristas é notável. Entre os latino-americanos, lembremos a Júlio Kaplan e a Júlio Bolbochán.

Miguel Najdorf compartiu com George Koltanowski duas sortes: salvaram-se do Holocausto graças a suas presencias num torneio de xadrez em Buenos Aires no começo da segunda Guerra e por isso não regressaram a Europa. A outra é que ambos especializaram-se em partidas simultâneas a cegas, nas que alcançaram importantes façanhas. Uns mais lembrados nesta especialidade foi Gyula Breyer, quem obteve o recorde jogando vinte e cinco simultâneas a cegas no Torneio de Berlim em 1920. Faleceu no ano seguinte a idade de 28 anos.

Najdorf jogou quarenta e cinco partidas em 1947 e Koltanowski superou a todos em 1960 quando jogou cinqüenta e sete simultâneas a cegas, das quais ganhou cinqüenta depois de quase dez horas de jogo. Que os judeus se destaquem no xadrez não significa a existência de uma relação com o judaísmo como civilização. Porém, o xadrez requer uma forma de pensamento muito especial, tal vez similar ao que destila a tradição de Israel. Grandes mestres internacionais tiveram sólida formação talmúdica como Chajes, Aron Nimzovith e Akiva Rubinstein.

UM POUCO DE HISTORIA

O midrash exagera quando se refere ao jogo de xadrez entre o rei Salomão com seu conselheiro Benaiá Ben Iehoiadá, mas ainda não foi esclarecido quando os judeus conheceram o jogo. O investigador contemporâneo Victor Keats coincide com o máximo exegeta, Rashi (século XI) que a menção talmúdica do nardeshir (Talmud Babilônico – Tratado Ketuvot 61b) refere-se ao xadrez. Há dois eruditos que no século passado negaram essa possibilidade. Franz Delizsch concluiu que como o Talmud foi fechado no século V, e o xadrez foi transmitido pelos persas só a fim desse século, o nardeshir não se deve identificar com o xadrez. Além de isso, o pai da bibliografia judia, Moritz Stenschneider, conjetura em sua monumental obra que o primeiro judeu que recomeça o jogo, foi o filho do rabi Saul de Taberistan, depois do século IX.

O século XII parece reafirmar a relação entre judaísmo xadrez. Maimonides se refere ao jogo em seu comentário na Mishná, Iehudá Haleví o menciona ao final do livro O Cuzari, e seu amigo Abraham Ibn Ezra redige o regulamento de xadrez existente mais antigo sob o título de Haruzim. O Sefer Hachasidim recomenda o jogo no século XIII, e em 1575 os rabinos de Cremona sentenciaram que “todos os jogos são ruins e causam problemas com exceção do xadrez..”

Na modernidade, a amizade entre Moisés Mendelshon e Gotthold Lessing, quem tivera grande influencia na Emancipação judia e o iluminismo, nasceu frente ao tabuleiro de xadrez. Em 1837 redige a primeira enciclopédia sobe o jogo, um judeu francês, Aron Alexandre. Um par de anos depois, um dos novos educadores iluministas, Jacob Einchenbaum, quem era matemático, escreve um poema extenso em hebraico sobre a partida de xadrez, ao que denominou Há-kerav (a batalha). Consiste em oitenta estrofes rimadas de seis versos duo decasílabos cada uma. Essa combinação de matemático - literato - xadrecista de Einchenbaum, deu-se também em outro grande judeu como Louis Zangwill. Na pintura, o húngaro Isidor Kaufmann, quem cobrou notoriedade ao pintar a vida cotidiana no shtetl, produz um conhecido quadro no que se observa a presencia do xadrez entre os judeus ortodoxos de Galitzia. Na literatura, é bom lembrar a novela de Stefan Zweig O jogador de xadrez.

Aos judeus se devem as escolas moderna (Wilhelm Steinitz) e hipermoderna (Richard Réti) e a fundação da Chess Review dos Estados Unidos (Israel Horowitz).

Gerald Abrahams explica a proximidade entre os judeus e o xadrez com quatro hipóteses. Devido às migrações, tradição de estudo e cosmopolitismo, os judeus:

Produzem mais que outros grupos intelectuais. Amam o estudo e o aprendizagem. São muito perseverantes, e têm a habilidade para os idiomas, incluído um muito peculiar: o xadrez.

De judeufobia não esteve excetuado o xadrez. Alexandre Alekhine chegou a ser campeã mundial em Buenos Aires, título que manteve durante quase duas décadas; faleceu diante de um tabuleiro depois de dedicar-lhe toda sua vida. Não se privou de escrever uma desgraçada série de notas judeofóbicas durante o Holocausto. Nelas tipifica uma forma especial dos judeus jogarem xadrez, por contraposição ao “xadrez ariano”. O texto de Alekhine traz a memória à infâmia que em 1850 publicara Richard Wagner (O judaísmo na música) na que o gênio negava a possibilidade de cultura o de criatividade dos judeus.

Em absurdo paralelo, o russo Alekhine se propôs explicar como o modo judaico de jogar xadrez se caracteriza pelo oportunismo, por uma firme defesa e a ganância material a toda custa. Quando aconteceu o primeiro Torneio Internacional (Londres, junho de 1851) o alemão Adolf Anderssen venceu ao matemático judeu Lionel Kieseritzky, destacando-se a partida por uma beleza insuperável, valendo-lhe o nome de “La Imortal”. De acordo com o esquema de Alekhine, aquela vitória marcou o triunfo do “xadrez ariano” por sobre a sinuosidade judia que dominaria durante o século posterior.

Ao deixar de lado tais libelos, não caiamos em outro extremo que é negar toda possível relação entre o xadrez e o judaísmo.

UM POUCO DE FILOSOFIA

É lamentável que a disciplina filosófica não tenha se ocupado do jogo de xadrez, quando poderia ser matéria de estudo. Dois filósofos judeus poderiam exemplificar suas respectivas escolas com o tabuleiro de xadrez. Faço referencia a Henri Bérgson e a Salomão Maimon.

Do primeiro, seu conceito de durée traz uma visão do tempo contraposto ao tempo matemático “tudo transcorrido”, que serve de fundamento para o chamado análises post-mortem da partida enxadrista. Por enquanto Maimon, por meio de seu sistema podem os nos aproximar a pergunta de que tipos de verdades são as do xadrez. Emanuel Kant considerou a Salomão Maimon “quem melhor sua doutrina”.

Em rigor, os dois tipos de verdades kantianas, as a - priori e as a - posteriori (as que antecedem ou sucedem a experiência de nossos sentidos) não deixam lugar suficiente para um tipo especial de verdade que é a enxadrista e que têm uma notável condição.

A verdade do tabuleiro parece ser a - priori como a matemática, é dizer um conhecimento ao que podemos alcançar pelo raciocínio e sem necessidade da experiência. Porém, descobrimos que as verdades do bispo e do roque ficam vigentes somente quando a partida é conhecida em seu conjunto.

Por um lado, é possível jogar xadrez com a imaginação e sem sequer abrir os olhos e chegar a conclusões sobre suas verdades. Pelo outro, é difícil saber se uma verdade é certa até tanto não seja vista desde a perspectiva da partida já terminada. E dizer que suas verdades valem quando podem se identificar num universo de dados que a precedem. Só nesse universo concluído uma jogada pode definir-se como brilhante, medíocre o deficiente.

Digamos que nesse contexto Salomão Maimon acusou a lei de determinabilidade, por meio da qual tentou colocou as duas kantianas um terceiro tipo de verdades, uma espécie de mistura das originais.

Em tudo caso, o xadrez fascina não só desde a psicologia do jogador, os computadores e matemática, ou sua inspiração artística. Também no terreno filosófico pode atrair, e um dos poços investigadores que se ocupou desta questão é José Bernadete da Universidade de Syracuse.

UM POUCO DE TALMUD 

Há sete dimensões paralelas entre o estudo talmúdico, característico da mentalidade judaica e o do xadrez. Estas são: a indispensabilidade do estudo, a memória, a compreensão visual, a centralidade da lei rígida, a importância do debate, a necessidade da atrevida inteligência, e um pensamento antiautoritario e original.

Tal vez a partir dessas similitudes, analisadas uma por uma, poderíamos entender melhor por que os judeus tiveram e têm uma presencia tão notável no xadrez.

Os dois conceitos talmúdicos do Sinai (erudito) frente à Oker Harim (perspicaz) têm aplicação nas escolas de xadrez. Dos judeus poderiam encarná-las, como o dogmático Tarrasch frente ao flexível Lasker. Enquanto o primeiro irradiava conhecimentos, o último irradiava sabedoria.

Em soma, a fundação da academia de xadrez deve ser recebida com jubilo, sobre tudo porque sua criação se produz em Israel, um pais que deveria entender-se como seu marco natural. E aventuremos-nos que seu programa de estudos, além da aventura do tabuleiro em si, abarcara muitas disciplinas auxiliares. Junto com a matemática e a filosofia, fazemos votos para não faltar à página do Talmud.

Autor: Dr. Gustavo D. Perednik

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